Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice. (I Co 11.28)
De início, é importante que reconheçamos a questão da participação de crianças na Ceia do Senhor é um assunto polêmico dentre as mais variadas denominações cristãs-evangélicas. Nossos irmãos da Igreja Luterana Evangélica do Brasil, por exemplo, advogam que as crianças podem e devem participar da Eucaristia (da Ceia) mediante ensino preliminar sequencial sobre a importância e seriedade dessa participação (cf. website: http://www.luteranos.com.br/conteudo/ceia-do-senhor-com-criancas. Acesso: 22/12/2016). A Igreja Metodista aceita que as crianças, filhas dos membros da igreja, irmãos/ãs da comunidade de fé ou pelas pessoas responsáveis pela sua educação da fé, participem da Ceia. Por seu turno, o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, respondendo consulta sobre os membro comungantes e não-comungantes e participação das crianças batizadas na infância, na celebração da Santa Ceia do Senhor (CE-SC/IPB-2004 - DOC XXXVII - Quanto ao Documento 004 - disponível em: http://www.executivaipb.com.br/site/atas/CE/CE2004/doc_XXXVII_004.pdf ) conclui que filhos de pais crentes ("filhos do pacto") podem e devem manifestar a fé salvadora e assim que ela manifeste esta fé pode ser recebida por meio da Profissão Pública de Fé e participar assim da Ceia do Senhor. Estes devem receber educação cristã e espiritual formal, a qual deve ser ministrada pelos pais, com ajuda e orientação da Igreja, antes da participação na Ceia do Senhor. Na Igreja Anglicana Reformada do Brasil, os pais são responsáveis de discernir e instruir os seus filhos na fé Cristã. Eles devem decidir se os filhos estão prontos para participar da celebração da Santa Comunhão. Há outras muitas variações sobre esse tema.
Olhando para os diversos entendimentos acerca da participação de crianças na Ceia, a despeito das muitas variações interpretativas, nota-se que há o consenso quase absoluto (com exceção das denominações neopentecostais, onde não há um claro critério de membresia e a ceia é servida para todos os presentes) de que apenas um convertido devidamente batizado nas águas seja admitido na Ceia, excluindo-se desse modo a "Ceia Aberta" (também chamada "Ceia Universal ou Ultra-Livre", onde os elementos são servidos a todos os presentes na ocasião, independente do seu credo, da fé salvadora no Senhor Jesus Cristo e da religião). Assim, uma criança que tenha sido previamente batizada nas águas pode, como crente em Cristo, participar da Ceia, uma vez que a fé salvadora precede tanto o batismo quanto a Ceia. Pelas Escrituras Sagradas, fica evidente que a consciência de pecado, regeneração, fé e salvação precedem o batismo, sendo pré-requisitos para o mesmo, de modo que é necessário que o candidato ao batismo possua discernimento quanto àquilo que representa o batismo. Por derivação, a necessidade do discernimento do ato aplica-se também à Ceia (concordando desse modo com o ensino de I Co 11.28).
No que consiste o auto-exame a que Paulo se refere em "examine-se, pois, o homem a si mesmo"? "Examinar" vem do termo grego "dokimazo", assim a expressão "examine-se a si mesmo" é a tradução de "dokimazetō eauton". O termo dokimazo significa "testar; discernir; examinar; provar; experimentar; julgar"; "colocar à prova"; "distinguir pelo teste"; "aprovado após testado". O termo grego era usado, por exemplo, quando se verificava se algo era genuíno ou não (como metais), como em Rm 14.22; I Co 16.3; II Co 8.22 e I Jo 4.1. O mesmo termo é usado com o sentido de "examinar, escrutinizar, provar" em II Co 8.8 ("...mas para provar, pela diligência dos outros, a sinceridade de vosso amor") e em I Ts 2.4 ("Mas, como fomos aprovados de Deus para que o evangelho nos fosse confiado, assim falamos, não como para agradar aos homens, mas a Deus, que prova os nossos corações"). Vejamos outras traduções da Bíblia Sagrada:
1. Aramaic Bible in Plain English: Because of this, let a man search his soul, and then eat of this bread and drink from this cup (tradução: "Por causa disto, que o homem busque sua alma, e então coma deste pão e beba deste cálice").
2. GOD'S WORD® Translation: With this in mind, individuals must determine whether what they are doing is proper when they eat the bread and drink from the cup. (tradução: "Com isto em mente, os indivíduos devem determinar se o que eles estão fazendo é apropriado quando eles comem o pão e bebem o cálice.")
3. Jubilee Bible 2000: But let each man prove himself, and so let him eat of the bread and drink of the cup. (tradução: "Mas cada homem prove a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice.") O mesmo texto encontra-se nas versões Darby Bible Translation e English Revised Version, com pequenas variações.
4. Bíblia King James Atualizada Português: Examine, pois, cada um a si próprio, e dessa maneira coma do pão e beba do cálice.
Portanto, fica claro que o "auto-exame" recomendado por Paulo como prévio ao participar da Ceia refere-se a uma atividade que deve ser realizada a partir da capacidade de juízo, de julgamento, de raciocínio pessoal. Há a obrigatoriedade, portanto, para aquele que pretende participar da Ceia, de verificar se encontra-se apto para isso ou não. Seguindo-se a leitura de I Co 11 a partir do versículo 27, Paulo vai explicar que a obrigatoriedade do auto-exame deve-se a seriedade e severidade da participação na Ceia: "Portanto, qualquer que comer este pão, ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice. Porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor. Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem. Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados. Mas, quando somos julgados, somos repreendidos pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo". Noutras palavras, caso o auto-exame não seja realizado, aquele que participa da Ceia corre o sério risco de "participar indignamente, sendo réu do corpo e do sangue do Senhor", "comendo e bebendo a Ceia para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor". Como consequência disso, ou seja, da participação indigna, havia entre os crentes Corintos "muitos fracos e doentes", e muitos que haviam morrido.
De antemão, é fácil perceber que esse auto-exame prévio refere-se dentre outras coisas a "discernir o corpo do Senhor". Conforme o Comentário de Benson, discernir o corpo do Senhor envolve considerar a morte de Cristo e os benefícios que o Senhor obteve por meio dela para nós, por seu amor surpreendente por nós, representados naquela solene ordenança; distinguindo assim o pão e o cálice do alimento comum. Ou seja, no erro dos crentes de Corinto estava envolvido o ato de não considerar o simbolismo do pão e o cálice como corpo e sangue do Senhor, mas sim como um alimento comum cotidiano. Aquele pão e cálice eram, nas palavras do próprio Senhor Jesus por ocasião da última Ceia, "o meu corpo" e "meu sangue" (Mt 26.26-28). O pão representa seu corpo dado por nós no Calvário e o vinho simboliza o seu sangue derramado. Note: o pão não se transformava em carne, nem o vinho se transformava em sangue; estes elementos não se transubstanciavam (transformação de uma substância em outra) nem se consubstanciavam (união de dois ou mais corpos na mesma substância) naqueles. Isso, contudo, não significa que devamos considerar a Ceia como somente um rito vazio ou mero memorial, uma vez que há no ato de comer da Ceia severas consequências para quem o fizer indignamente.
Parênteses: Particularmente, o autor desse texto crê que uma vez consagrados no momento da Ceia, o pão e o cálice passam a representar no mundo espiritual o corpo e o sangue do Senhor. Na terra, o pão continua a ser pão e cálice (suco de uva ou vinho) continua a ser o mesmo, jamais alterando sua substância molecular nem tendo a adsorção de moléculas do corpo e do sangue (não há fenômeno de superfície no pão e no cálice); daí segue que ingeri-los é ingerir pão e cálice. Porém, no mundo espiritual, é como se o crente estivesse comendo do corpo e do sangue do Senhor.
O fato é que a Ceia do Senhor é uma ordenança repleta de significação espiritual, daí segue-se a imperiosa necessidade de entendimento acerca da participação na mesma. Esse discernimento é algo que muitas pessoas com capacidade de julgamento não conseguem alcançar - vide os crentes Corintos, imagine então as crianças!!!
O auto-exame é então aqui determinado como um modo de levar o crente a participar "dignamente" da Ceia do Senhor, evitando-se assim profaná-la, tal como mencionado nos versículos 27 e 29. No auto-exame, o crente faz uma análise honesta e criteriosa sobre o significado da Ceia bem como das razões de sua participação na Ceia. Muitas coisas estão, portanto, envolvidas nesse auto-exame: do ponto de vista pessoal, vão desde o reconhecimento das faltas pessoais com o sincero desejo de abandoná-las bem como da necessidade de perdoar e receber perdão dos irmãos com quem participa da comunhão cotidiana. Passa, portanto, pelo reconhecimento das faltas e pelo consequente arrependimento sincero das mesmas (obviamente, todo aquele que vive obstinadamente em pecado e aqueles que foram excluídos da Igreja não podem participar da Ceia). Olhando agora para o aspecto coletivo, a Ceia é a expressão máxima da comunhão que temos uns com os outros (comunhão envolve decisivamente a participação naquilo que é comum, terreno, de modo que o amor fraternal encontre a sua expressão além do poético, mas de modo prático), pois é a comunhão naquilo que é espiritual e que nos une como Igreja - não instituição humana falida, hipócrita e religiosa, mas sim como Organismo Vivo e Sobrenatural, que é o Corpo de Cristo. Na ceia mostramos a nossa dependência contínua da verdadeira vida que
vem de Jesus através da comunhão viva com ele no Espírito neste Corpo de
muitos membros. Tudo, portanto, que impede ou dificulta a comunhão no que é terreno, impede a comunhão naquilo que é espiritual; daí, constituem-se faltas contra o Corpo e devem ser também objeto de arrependimento sincero. A Ceia do Senhor nos conclama à união, na qualidade de um só Corpo, e não às divisões, partidos e facções, como se fôssemos membros de diferentes corpos!
Parênteses: Para o pr. Harold Walker, o crente deve chegar-se a Deus sem mentira e sem fingimento, mas com verdade e luz. Aquilo que os outros veem deve ser o que você é. Chegue-se a Deus e à ceia reconhecendo que você é uma “porcaria”, mas uma “porcaria” aceita por Deus. Deus aceita todo tipo de “porcaria”; Ele só não aceita “porcaria com cara de crente”. Deus ama a sinceridade e a verdade. Ele não tem problema com pecado, porque o pecado Ele resolve. Ele tem problema com a religiosidade, pois esta encobre o pecado e nos faz fingir que somos santos. Então, “aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura.” (Hebreus 10.22). Ter um “coração purificado da má consciência” é ter seus pecados confessados, é andar na luz. Assim que fizer algo errado, procure alguém e confesse seu pecado, fique com a consciência limpa diante de Deus. “Corpo lavado com água limpa” se refere ao batismo. Não se deve tomar a ceia sem ser batizado. No batismo, minha mente é purificada porque recebo perdão pelo sangue. O que lava é o sangue, e não a água. Mas se eu não obedecer à Palavra e descer às aguas, o sangue não vai me lavar. Só posso ter a consciência purificada se eu for batizado. Portanto, tendo o corpo purificado com água limpa, a mente purificada pelo sangue e um verdadeiro coração na luz, “retenhamos inabalável a confissão da nossa esperança, porque fiel é Aquele que fez a promessa; e consideremo-nos uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras, não abandonando a nossa congregação, como é costume de alguns, antes admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais, quanto vedes que se vai aproximando aquele dia.” (Hebreus 10.23-25). (fonte: http://www.servindocomapalavra.com.br/dinamic2/index.php/textos-publicados/79-como-tomar-a-ceia-do-senhor)
Assim uma criança não batizada, mesmo sendo inocente, pode participar da ceia? A resposta é não. Nesse caso, sua participação seria indigna (I Co 11.27), não por causa de sua condição, mas porque não se enquadra na maneira correta da participação da Ceia. Se as crianças sentirem vontade de tomar a ceia, devem os pais explicar-lhes a razão de sua proibição. No tempo da lei, se alguém comesse da carne do sacrifício de forma indigna, cometia pecado (Lv 7.18; Lv 22.10). Um não batizado ou uma criança, não pode apropriar-se das coisas consagradas ao Senhor: “Laço é para o homem apropriar-se do que é santo…” (Pv 20.25).
Perceba que a solução seria batizar as crianças. Porém, é preciso considerar também no batismo de crianças o elemento do discernimento e da compreensão. Hoje, é comum vermos crianças pedindo para serem batizadas apenas para poderem participar da Ceia, estando ausentes os elementos espirituais necessários para que uma pessoa seja batizada nas águas: arrependimento, confissão e fé, justamente porque lhes falta a capacidade de compreender tais coisas. Aqui, nesse ponto, é bom fazermos a seguinte distinção: há crianças que não atingiram a maturidade para serem batizadas e, portanto, não possuem ainda condições de participação na Ceia. Porém, há também crianças que compreendem bem sua condição para com Deus e podem, portanto, expressarem as condições para serem batizadas e por conseguinte participarem da Ceia. Note que a chamada à salvação, que envolve o reconhecimento da condição perante Deus e a aceitação da solução por Deus proposta, bem como a perseverança no Caminho, envolve a necessidade de reflexão - inicial e sequencial. Os pais e os pastores devem analisar todos os candidatos antes de procederem ao batismo, o que inclui as crianças, e não satisfazerem vontades dissociadas de elementos probatórios verificáveis.
Com que idade uma criança se torna responsável pelos seus atos, podendo ser então considerado o batismo das mesmas? Os teólogos da idade média pressupunham que com 12 anos as crianças atingiam a fase da responsabilidade. Secularmente, alguns países fixam a responsabilidade (criminal, ou seja, a pessoa passa a ter responsabilidade sobre seus atos perante a lei humana) aos 10 anos. A idade da responsabilidade criminal nos Estados Unidos varia de 6 a 12 anos; na Inglaterra e no País de Gales, é 10 anos; na Suíça, 10; na Escócia, 12; na França, 13; na Rússia, na Alemanha e no Japão, 14; na Suécia e na Dinamarca, 15; em Portugal, 16. No Brasil, apesar da maioridade ser conferida somente aos 18 anos, há crianças de até 8 anos que cometem violência e fazem sexo (até sexo entre crianças). Com a influência cada vez mais poderosa da mídia, bem das pressões - até políticas - para o despertamento sexual das crianças - verdadeira atuação de Satanás sobre as mesmas, é impossível deixar de afirmar que cada vez mais precocemente as crianças atingem a compreensão dos seus atos (perdendo a prerrogativa de inocência). De qualquer modo, os pais - a quem Deus conferiu a primeira e grande responsabilidade de ensinar as crianças - juntamente com os pastores das Igrejas devem analisar caso a caso a fim de decidir batizar ou não uma criança.
Concluindo: as crianças não devem participar da Ceia, a menos que sejam previamente batizadas nas águas. E isso pressupõe a compreensão de tudo o que está envolvido nesse ato. As exigências são, portanto, as mesmas para adultos, adolescentes e crianças. Não batizar crianças que ainda não tem a condição de sê-lo (bem como negar-lhes consequentemente a participação na Ceia) tem função pedagógico-espiritual tanto para as próprias crianças, como para os adultos, relacionado à valorização da importância e seriedade de ambas as ordenanças. Eventuais justificativas quanto a participação de crianças na Ceia baseadas no Antigo Pacto não se sustentam, tendo-se em vista que a Ceia não é a versão ipsis litteris da Páscoa judaica. Vale lembrar, por fim, que ambas as ordenanças não são sacramentos. Os sacramentos conferem graça e santificação pela simples participação neles; já nas ordenanças é preciso entender a fim de usufruir dos benefícios espirituais dos mesmos (Paulo, em Romanos 6, explica com profundidade o significado espiritual do batismo) e, como vimos no caso da Ceia, é preciso discernir para não participar indignamente.
Pense nisso!
Graça e paz!
sábado, 24 de dezembro de 2016
segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
ISRAEL NO DESERTO OU IGREJA NA TERRA: O PAPEL DA LIDERANÇA NA CONDUÇÃO DO POVO DE DEUS
"E disse: Ouvi agora as minhas palavras; se entre vós houver profeta, eu, o SENHOR, em visão a ele me farei conhecer, ou em sonhos falarei com ele. Não é assim com o meu servo Moisés que é fiel em toda a minha casa. Boca a boca falo com ele, claramente e não por enigmas; pois ele vê a semelhança do SENHOR; por que, pois, não tivestes temor de falar contra o meu servo, contra Moisés?" (Nm 12.6-8)
"Então pareceu bem aos apóstolos e aos anciãos, com toda a igreja, eleger homens dentre eles e enviá-los com Paulo e Barnabé a Antioquia, a saber: Judas, chamado Barsabás, e Silas, homens distintos entre os irmãos. E por intermédio deles escreveram o seguinte: Os apóstolos, e os anciãos e os irmãos, aos irmãos dentre os gentios que estão em Antioquia, e Síria e Cilícia, saúde. Porquanto ouvimos que alguns que saíram dentre nós vos perturbaram com palavras, e transtornaram as vossas almas, dizendo que deveis circuncidar-vos e guardar a lei, não lhes tendo nós dado mandamento, Pareceu-nos bem, reunidos concordemente, eleger alguns homens e enviá-los com os nossos amados Barnabé e Paulo, Homens que já expuseram as suas vidas pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Enviamos, portanto, Judas e Silas, os quais por palavra vos anunciarão também as mesmas coisas. Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais encargo algum, senão estas coisas necessárias: Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da prostituição, das quais coisas bem fazeis se vos guardardes. Bem vos vá. Tendo eles então se despedido, partiram para Antioquia e, ajuntando a multidão, entregaram a carta." (At 15.22-30)
Dois textos diferentes, duas épocas diferentes. No primeiro, Moisés é o guia, o mediador da Velha Aliança, escolhido por Deus para levar o povo de Deus do Egito para a Terra Prometida. Já no segundo, na época do Novo Testamento, vemos os apóstolos e presbíteros da Igreja decidirem conjuntamente, como liderança eleita por Deus, acerca da validade e aplicabilidade das práticas e ritos do Velho Testamento para os crentes em Cristo Jesus. Nos dois casos, vemos que há uma liderança instituída por Deus, com responsabilidades com relação à Congregação (Israel no Antigo e Igreja no Novo Testamento), lideranças que devem ser respeitadas pelo ofício que desempenham. Porém, as semelhanças entre os dois tipos de liderança param por aí. Isso é muito importante ser compreendido, porque há muitos abusos hoje sendo cometidos por lideranças religiosas, que se apropriaram do dogma da infalibilidade papal e passaram a governar a Igreja seguindo os pressupostos do Absolutismo (teoria política que defende que alguém, em geral, um monarca, deve ter o poder absoluto, isto é, independente de outro órgão. É uma organização política na qual o soberano concentrava todos os poderes do estado em suas mãos). Essas lideranças, discípulas do monarca francês Luís XIV (conhecido como "Rei Sol") o qual declarou solenemente, a seu chanceler, que os ministros e secretários de Estado iriam auxiliá-lo com seus conselhos, apenas e somente quando lhes fosse pedido. Ou seja, ele, Luís XIV, bastava-se a si mesmo.
Precisamos primeiramente, portanto, compreender com clareza como funcionava a liderança no Antigo Testamento e como ela deve funcionar no Novo Testamento. Novamente, tratam-se de momentos distintos na vida espiritual do povo de Deus. Para entendermos como a liderança funcionava nos dois Testamentos precisamos recorrer a Antropologia Bíblica, especificamente no que se refere à parte imaterial do homem e seu estado, com relação a Deus, em ambos os testamentos.
Daí, inicialmente vemos o homem sendo criado por Deus "do pó da terra", conforme registrado no Livro de Gênesis 2:7: "E formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente." Aqui, Deus forma o homem completo - corpo, espírito (fôlego da vida) e alma (que surge do contato do espírito com o corpo). Portanto, vemos o homem tripartite, criado à imagem de Deus. Antes da queda (o pecado original), o homem, que é constituído por três partes - corpo, alma e espírito - gozava de plena comunhão com Deus. A parte do homem responsável pelo relacionamento do homem com o mundo espiritual é o espírito humano. Em seu estado de santidade e comunhão com o Criador, o homem vivia uma vida de saúde física, emocional e espiritual. Com o pecado, a comunhão com Deus foi rompida. O homem, então, passou imediatamente a um estado de morte espiritual (separação do homem de Deus). Essa condição - de morte espiritual - passou de Adão a toda raça humana, o que implica que toda a raça humana perdeu o contato natural, primevo, que tinha com Deus. Isso não significa que o espírito humano deixou de existir, mas que perdeu a sua função, tornando-se inútil.
Assim, na época do Antigo Testamento, todo homem, qualquer que seja, está sujeito a essa condição espiritual: de morte do espírito. Deus não pode se comunicar com o homem utilizando seu espírito; portanto, para haver comunicação entre Deus e o homem, Deus tem (1) que tomar a iniciativa e (2) precisa fazer com que esta comunicação aconteça sem a intervenção de qualquer parte ou modo humano. Ou seja, era Deus comunicando ao homem a Sua vontade de uma forma tal que não houvesse nenhuma chance para interpretação humana. Deus deveria garantir todo o processo de comunicação. Para comunicar-se com a humanidade que Ele tanto amou (e ama), Deus escolhia uma pessoa e usava essa pessoa para transmitir Sua vontade ao homem. Assim, vemos Deus se comunicando com e por Moisés e com e pelos profetas do Antigo Testamento. Por isso, no Antigo Testamento, lemos com frequência que "veio a palavra do Senhor" a uma determinada pessoa (I Sm 15.10; II Sm 24.11; I Rs 6.11; etc).
Como o homem fazia para identificar que a palavra que estava sendo transmitida era a "Palavra do Senhor"? Muito simples: pela critério da inerrância: "Eis lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. E será que qualquer que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu o requererei dele. Porém o profeta que tiver a presunção de falar alguma palavra em meu nome, que eu não lhe tenha mandado falar, ou o que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá. E, se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o SENHOR não falou? Quando o profeta falar em nome do SENHOR, e essa palavra não se cumprir, nem suceder assim; esta é palavra que o SENHOR não falou; com soberba a falou aquele profeta; não tenhas temor dele." (Dt 18.18-22) Note aqui algo muito importante: No Antigo Testamento, não existe em nenhum lugar uma instrução semelhante a "julgai as profecias", porque a profecia naquela época era "tudo ou nada", ou 100% de Deus ou 100% do erro. As profecias dos profetas do Antigo Testamento se constituíram no canôn do Antigo Testamento e não são para serem julgadas, ao contrário; são elas que nos julgam! Nós não julgamos as profecias de Isaías e Ezequiel, por exemplo; mas sim o contrário.
Por esta razão, a liderança de Moisés não era objeto de questionamento da parte de Israel: quando Moisés trazia a direção ao povo, essa direção era 100% a direção divina. Logo, questionar a direção dada a partir de Moisés era questionar o próprio Deus! Além disso, nenhum israelita tinha em si condições espirituais para fazer tal julgamento, uma vez que seus espíritos estavam mortos para com Deus. O discernimento espiritual era impossível naquela época! Portanto, todos deviam obedecer inquestionavelmente a liderança que Deus havia levantado!
Porém, a situação "muda de figura" quando passamos ao Novo Testamento. No Novo Testamento, os homens podem ter seus espíritos ressuscitados, podem experimentar o novo nascimento em Cristo Jesus: "O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito" (Jo 3.6). Quando Adão pecou, ele morreu, e bem assim toda a sua descendência. A morte de Adão não foi de imediato uma morte física, mas espiritual. O seu espírito morreu para Deus. O novo nascimento é o renascer deste espírito para Deus. Agora, com o novo nascimento (ou regeneração espiritual), o crente em Cristo torna-se "habitação do Espírito Santo" (Ef 2.22; I Co 6.19; II Co 6.16; etc), que passa a "dar testemunho" junto com o espírito do crente (mostrando que agora vive novamente) (Rm 8.16). Este novo nascimento possibilita que o crente discirna o espiritual do mundano, podendo julgar todo ensino, pregação, direção, palavra, orientação espiritual à luz (1) da Palavra de Deus, como os nobres crentes de Beréia, os quais examinavam as escrituras todos os dias para ver se as coias eram de fato como estava sendo pregada pelos apóstolos (At 17.11) e (2) do testemunho do Espírito no seu espírito, resultado do restabelecimento de sua comunhão com Deus. Percebe? No Novo Testamento, o crente não está mais morto espiritualmente; ele está vivo para com Deus! Portanto, Deus pode falar - e fala - com ele também, sem precisar de intermediários ou mediadores. O único e suficiente mediador entre o homem e Deus, no Novo Testamento, é Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (I Tm 2.5).
Obviamente, a responsabilidade no Novo Testamento ficou muito maior: a responsabilidade que só cabia aos profetas do Antigo Testamento recaiu no Novo sobre todos os crentes! Todos passaram a ter a responsabilidade de aprender a ouvir a Deus e de obedecê-Lo e de conhecer as Escrituras. Antes, era só seguir o profeta, o líder. Agora, é preciso discernir a direção dada, se vem do Senhor e até que medida ou é coisa humana ou até do espírito do erro. Sempre lembrando que cada crente, por mais comunhão que tenha com Deus, jamais será infalível em termos espirituais - ou seja, incapaz de discernir 100% as Escrituras e 100% a direção de Deus. Isso deve-se ao fato de ainda possuirmos em nós a velha natureza do pecado. Por isso, surge no Novo Testamento algo inédito e imprescindível no plano de Deus para redenção do homem: A IGREJA. A Igreja, a coletividade dos crentes em Cristo Jesus, lócus espiritual daqueles que nasceram de novo, torna-se um lugar de suma importância para a fé individual, pois é com ela, junto dos meus irmãos e irmãs em Cristo, que vou CONFERIR MUTUAMENTE a direção que interpreto ser de Deus e APROFUNDAR meu conhecimento e prática das Escrituras. Veja a IMPORTÂNCIA CAPITAL da Igreja: Nela, em comunhão com meus irmãos, estou protegido contra o espírito do erro, uma vez que vou buscar sempre conferir antes de decidir, estudar antes de ensinar! Cada crente, cada irmão e irmã na Igreja é importantíssimo para minha fé, portanto; pois todos podemos ouvir de Deus e devemos discernir aquilo que ouvimos.
É exatamente isso que vemos em ação em Atos 15! Não houve ali, na Assembléia dos crentes em Jerusalém, um "Moisés do Novo Testamento" que dissesse "vamos fazer assim e assim, porque Deus falou comigo e deu essa e aquela direção para todo mundo", como se só ele ouvisse de Deus e os demais não. Não, em hipótese alguma! Nem Paulo e nem Barnabé, apóstolos de Cristo, arrogaram-se "porta-vozes exclusivos do Altíssimo"! Não, absolutamente! Paulo e Barnabé "contavam quão grandes sinais e prodígios Deus havia feito por meio deles entre os gentios" (At 15.12). Quando estes se calaram, falou Tiago, o qual esclarecendo a questão julgou que não se deveria perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertiam a Deus (At 15.19). E o que aconteceu, em seguida? Os irmãos que ali estavam, que exerciam a liderança da Igreja, juntamente com toda a Igreja, analisaram os fatos narrados e o parecer de Tiago e então usaram o discernimento espiritual que possuíam, a fim de chegar na conclusão do assunto! O texto diz que eles tiveram consenso entre si (At 15.22-25) e entre eles e o Espírito Santo (At 15.28)! É tão óbvio: eles consultaram mutuamente uns aos outros sobre a questão em foco e chegaram a um consenso entre eles; os quais, obviamente, consultaram ao Senhor para saber se aquele consenso obtido entre eles era também consenso com o Espírito! Nem mesmo o consenso entre eles foi tido como ponto final na questão - e estavam ali homens como Tiago, Paulo, Barnabé, etc - mas o reconhecimento que cada um tinha de que estavam sujeitos ao erro os enchia de temor e os levaram a consultar também com o Senhor - este sim, a Palavra final!
Amado(a) leitor(a), a verdade é que hoje carecemos muitíssimo dessa sensibilidade espiritual! Hoje, homens tomam para si a prerrogativa que só cabe ao Espírito Santo, dando eles a palavra final nas questões de fé! Homens que com isso abrem um precedente imenso para que um espírito do erro, para que um demônio infernal acabe guiando todo um conjunto de pessoas para a perdição! O sentimento é que parece haver uma névoa nas mentes dos crentes quando se levanta um "Moisés do Novo Testamento": eles abrem mão de discernir, de debater, de questionar e aceitam tudo que é dito, tudo que é falado, de forma passiva, como se desprovidos de espírito (e em alguns casos de cérebro mesmo)! Não existe "um decidir por todos" no Novo Testamento! Pastor, apóstolo, bispo, missionário, evangelista, presbítero, papa, profeta, padre... não importa o título; ele não é infalível, não é absoluto, não é rei sol! Eles exercem a liderança da Igreja e glória a Deus por isso! São os líderes do povo de Deus! Porém, esses líderes devem consultar entre si SEMPRE quando forem tomar decisões que envolvam a Igreja, sendo importante também ouvir a Igreja, e após haver consenso, ser IMPRESCINDÍVEL consultar o Senhor. Veja: É PARA CONSULTAR AO SENHOR DEPOIS DE HAVER CONSENSO ENTRE OS HOMENS, NÃO ANTES! Não é "irmão, eu consultei ao Senhor sobre isso e aquilo, e Ele me deu essa direção..." NÃO, NÃO E NÃO!
Parênteses 1: Lembrando que para haver consenso é preciso haver mais do que uma reunião (a famosa "reunião de repasse"): é preciso haver liberdade de expressão!
Parênteses 2: O pior de tudo é que os "Moisés do Novo Testamento" cobram de todos depois quando a direção falha, quando dá zebra. Na hora de decidir, o "Deus me falou e vocês é que escutem calados"; na hora que dá zebra "somos um corpo e todos precisam ajudar". Olhe para as seitas neopentecostais e você facilmente constatará isso!
Quero ser muito enfático aqui, querido(a) leitor(a): É PARA BUSCAR O CONSENSO ENTRE A LIDERANÇA, podendo envolver a Igreja e obrigatoriamente, após o consenso, BUSCAR AO SENHOR SOBRE O ASSUNTO! É óbvio que para aqueles assuntos que já estão claramente estabelecidos nas Escrituras, isso não se aplica. Por exemplo, eu não preciso consultar e nem obter consenso se devo, como líder, ensinar sobre pecado, céu e inferno, necessidade de arrependimento, obras mortas, etc. Não preciso de consenso para pregação e ensino das Escrituras, nem para correção e disciplina daqueles que pecarem. Não preciso de consenso para escrever esse texto nem esse blog. Mas preciso de consenso (incluindo com o Senhor) se devemos ou não "adotar inovações" como prática da Igreja, ou em casos de mudança de logradouro, ou levantamento de obreiros, envio de missionários, etc. Veja que em todas as seitas e heresias que surgiram no meio do povo de Deus, elas foram fruto de "pessoas que julgaram ter ouvido a direção de Deus" e que não consultaram, mas apropriaram-se da prerrogativa de "palavra final" e assim levaram (e levam) milhões à destruição espiritual. Foi assim, por exemplo, com o presbiteriano Joseph Smith Jr., que afirmou ter recebido "uma nova revelação", não consultou com ninguém e acabou criando o Mormonismo; foi assim com o presbiteriano Charles Taze Russell, fundador do Russelismo ou Testemunhas de Jeová, só para mencionar alguns. Modernamente, veja-se o ESTRAGO que o Movimento G-12 fez em inúmeras Igrejas, construído sobre uma experiência pessoal de visão de um líder, desviando milhares de crentes do verdadeiro Evangelho de Cristo, com seu "paipóstolo patriarca", untado e besuntado, que seguem estritamente o dogma da infalibilidade patriarcal!
A revelação chegou à plenitude em Jesus Cristo, querido(a) leitor(a); portanto, toda alegação de novas revelações e novas verdades, por sonhos, visões e outros meios, deve ser cotejada com as Escrituras, corretamente interpretadas. Vale lembrar que é um dos princípios da Reforma Protestante o sacerdócio universal dos crentes, de livre exame da Bíblia e, portanto, de livre acesso a Deus, por meio de Jesus Cristo. Por isso, devem ser rejeitados o sacerdotalismo, o sacramentalismo e o ritualismo, qualquer tipo de hierarquia na esfera espiritual e eclesiástica, e a pretensão humana de interpor-se entre o crente e Deus. Há sempre que se prestar atenção em duas coisas: na direção individual do Espírito Santo e na direção do Espírito Santo aos demais que estão contigo no mesmo propósito e intenção do coração. O papel da liderança no Novo Testamento é buscar o consenso entre si e com Deus, para só então agir!
Pense nisso!
Graça e Paz!
"Então pareceu bem aos apóstolos e aos anciãos, com toda a igreja, eleger homens dentre eles e enviá-los com Paulo e Barnabé a Antioquia, a saber: Judas, chamado Barsabás, e Silas, homens distintos entre os irmãos. E por intermédio deles escreveram o seguinte: Os apóstolos, e os anciãos e os irmãos, aos irmãos dentre os gentios que estão em Antioquia, e Síria e Cilícia, saúde. Porquanto ouvimos que alguns que saíram dentre nós vos perturbaram com palavras, e transtornaram as vossas almas, dizendo que deveis circuncidar-vos e guardar a lei, não lhes tendo nós dado mandamento, Pareceu-nos bem, reunidos concordemente, eleger alguns homens e enviá-los com os nossos amados Barnabé e Paulo, Homens que já expuseram as suas vidas pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Enviamos, portanto, Judas e Silas, os quais por palavra vos anunciarão também as mesmas coisas. Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais encargo algum, senão estas coisas necessárias: Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da prostituição, das quais coisas bem fazeis se vos guardardes. Bem vos vá. Tendo eles então se despedido, partiram para Antioquia e, ajuntando a multidão, entregaram a carta." (At 15.22-30)
Dois textos diferentes, duas épocas diferentes. No primeiro, Moisés é o guia, o mediador da Velha Aliança, escolhido por Deus para levar o povo de Deus do Egito para a Terra Prometida. Já no segundo, na época do Novo Testamento, vemos os apóstolos e presbíteros da Igreja decidirem conjuntamente, como liderança eleita por Deus, acerca da validade e aplicabilidade das práticas e ritos do Velho Testamento para os crentes em Cristo Jesus. Nos dois casos, vemos que há uma liderança instituída por Deus, com responsabilidades com relação à Congregação (Israel no Antigo e Igreja no Novo Testamento), lideranças que devem ser respeitadas pelo ofício que desempenham. Porém, as semelhanças entre os dois tipos de liderança param por aí. Isso é muito importante ser compreendido, porque há muitos abusos hoje sendo cometidos por lideranças religiosas, que se apropriaram do dogma da infalibilidade papal e passaram a governar a Igreja seguindo os pressupostos do Absolutismo (teoria política que defende que alguém, em geral, um monarca, deve ter o poder absoluto, isto é, independente de outro órgão. É uma organização política na qual o soberano concentrava todos os poderes do estado em suas mãos). Essas lideranças, discípulas do monarca francês Luís XIV (conhecido como "Rei Sol") o qual declarou solenemente, a seu chanceler, que os ministros e secretários de Estado iriam auxiliá-lo com seus conselhos, apenas e somente quando lhes fosse pedido. Ou seja, ele, Luís XIV, bastava-se a si mesmo.
Precisamos primeiramente, portanto, compreender com clareza como funcionava a liderança no Antigo Testamento e como ela deve funcionar no Novo Testamento. Novamente, tratam-se de momentos distintos na vida espiritual do povo de Deus. Para entendermos como a liderança funcionava nos dois Testamentos precisamos recorrer a Antropologia Bíblica, especificamente no que se refere à parte imaterial do homem e seu estado, com relação a Deus, em ambos os testamentos.
Daí, inicialmente vemos o homem sendo criado por Deus "do pó da terra", conforme registrado no Livro de Gênesis 2:7: "E formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente." Aqui, Deus forma o homem completo - corpo, espírito (fôlego da vida) e alma (que surge do contato do espírito com o corpo). Portanto, vemos o homem tripartite, criado à imagem de Deus. Antes da queda (o pecado original), o homem, que é constituído por três partes - corpo, alma e espírito - gozava de plena comunhão com Deus. A parte do homem responsável pelo relacionamento do homem com o mundo espiritual é o espírito humano. Em seu estado de santidade e comunhão com o Criador, o homem vivia uma vida de saúde física, emocional e espiritual. Com o pecado, a comunhão com Deus foi rompida. O homem, então, passou imediatamente a um estado de morte espiritual (separação do homem de Deus). Essa condição - de morte espiritual - passou de Adão a toda raça humana, o que implica que toda a raça humana perdeu o contato natural, primevo, que tinha com Deus. Isso não significa que o espírito humano deixou de existir, mas que perdeu a sua função, tornando-se inútil.
Assim, na época do Antigo Testamento, todo homem, qualquer que seja, está sujeito a essa condição espiritual: de morte do espírito. Deus não pode se comunicar com o homem utilizando seu espírito; portanto, para haver comunicação entre Deus e o homem, Deus tem (1) que tomar a iniciativa e (2) precisa fazer com que esta comunicação aconteça sem a intervenção de qualquer parte ou modo humano. Ou seja, era Deus comunicando ao homem a Sua vontade de uma forma tal que não houvesse nenhuma chance para interpretação humana. Deus deveria garantir todo o processo de comunicação. Para comunicar-se com a humanidade que Ele tanto amou (e ama), Deus escolhia uma pessoa e usava essa pessoa para transmitir Sua vontade ao homem. Assim, vemos Deus se comunicando com e por Moisés e com e pelos profetas do Antigo Testamento. Por isso, no Antigo Testamento, lemos com frequência que "veio a palavra do Senhor" a uma determinada pessoa (I Sm 15.10; II Sm 24.11; I Rs 6.11; etc).
Como o homem fazia para identificar que a palavra que estava sendo transmitida era a "Palavra do Senhor"? Muito simples: pela critério da inerrância: "Eis lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. E será que qualquer que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu o requererei dele. Porém o profeta que tiver a presunção de falar alguma palavra em meu nome, que eu não lhe tenha mandado falar, ou o que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá. E, se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o SENHOR não falou? Quando o profeta falar em nome do SENHOR, e essa palavra não se cumprir, nem suceder assim; esta é palavra que o SENHOR não falou; com soberba a falou aquele profeta; não tenhas temor dele." (Dt 18.18-22) Note aqui algo muito importante: No Antigo Testamento, não existe em nenhum lugar uma instrução semelhante a "julgai as profecias", porque a profecia naquela época era "tudo ou nada", ou 100% de Deus ou 100% do erro. As profecias dos profetas do Antigo Testamento se constituíram no canôn do Antigo Testamento e não são para serem julgadas, ao contrário; são elas que nos julgam! Nós não julgamos as profecias de Isaías e Ezequiel, por exemplo; mas sim o contrário.
Por esta razão, a liderança de Moisés não era objeto de questionamento da parte de Israel: quando Moisés trazia a direção ao povo, essa direção era 100% a direção divina. Logo, questionar a direção dada a partir de Moisés era questionar o próprio Deus! Além disso, nenhum israelita tinha em si condições espirituais para fazer tal julgamento, uma vez que seus espíritos estavam mortos para com Deus. O discernimento espiritual era impossível naquela época! Portanto, todos deviam obedecer inquestionavelmente a liderança que Deus havia levantado!
Porém, a situação "muda de figura" quando passamos ao Novo Testamento. No Novo Testamento, os homens podem ter seus espíritos ressuscitados, podem experimentar o novo nascimento em Cristo Jesus: "O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito" (Jo 3.6). Quando Adão pecou, ele morreu, e bem assim toda a sua descendência. A morte de Adão não foi de imediato uma morte física, mas espiritual. O seu espírito morreu para Deus. O novo nascimento é o renascer deste espírito para Deus. Agora, com o novo nascimento (ou regeneração espiritual), o crente em Cristo torna-se "habitação do Espírito Santo" (Ef 2.22; I Co 6.19; II Co 6.16; etc), que passa a "dar testemunho" junto com o espírito do crente (mostrando que agora vive novamente) (Rm 8.16). Este novo nascimento possibilita que o crente discirna o espiritual do mundano, podendo julgar todo ensino, pregação, direção, palavra, orientação espiritual à luz (1) da Palavra de Deus, como os nobres crentes de Beréia, os quais examinavam as escrituras todos os dias para ver se as coias eram de fato como estava sendo pregada pelos apóstolos (At 17.11) e (2) do testemunho do Espírito no seu espírito, resultado do restabelecimento de sua comunhão com Deus. Percebe? No Novo Testamento, o crente não está mais morto espiritualmente; ele está vivo para com Deus! Portanto, Deus pode falar - e fala - com ele também, sem precisar de intermediários ou mediadores. O único e suficiente mediador entre o homem e Deus, no Novo Testamento, é Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (I Tm 2.5).
Obviamente, a responsabilidade no Novo Testamento ficou muito maior: a responsabilidade que só cabia aos profetas do Antigo Testamento recaiu no Novo sobre todos os crentes! Todos passaram a ter a responsabilidade de aprender a ouvir a Deus e de obedecê-Lo e de conhecer as Escrituras. Antes, era só seguir o profeta, o líder. Agora, é preciso discernir a direção dada, se vem do Senhor e até que medida ou é coisa humana ou até do espírito do erro. Sempre lembrando que cada crente, por mais comunhão que tenha com Deus, jamais será infalível em termos espirituais - ou seja, incapaz de discernir 100% as Escrituras e 100% a direção de Deus. Isso deve-se ao fato de ainda possuirmos em nós a velha natureza do pecado. Por isso, surge no Novo Testamento algo inédito e imprescindível no plano de Deus para redenção do homem: A IGREJA. A Igreja, a coletividade dos crentes em Cristo Jesus, lócus espiritual daqueles que nasceram de novo, torna-se um lugar de suma importância para a fé individual, pois é com ela, junto dos meus irmãos e irmãs em Cristo, que vou CONFERIR MUTUAMENTE a direção que interpreto ser de Deus e APROFUNDAR meu conhecimento e prática das Escrituras. Veja a IMPORTÂNCIA CAPITAL da Igreja: Nela, em comunhão com meus irmãos, estou protegido contra o espírito do erro, uma vez que vou buscar sempre conferir antes de decidir, estudar antes de ensinar! Cada crente, cada irmão e irmã na Igreja é importantíssimo para minha fé, portanto; pois todos podemos ouvir de Deus e devemos discernir aquilo que ouvimos.
É exatamente isso que vemos em ação em Atos 15! Não houve ali, na Assembléia dos crentes em Jerusalém, um "Moisés do Novo Testamento" que dissesse "vamos fazer assim e assim, porque Deus falou comigo e deu essa e aquela direção para todo mundo", como se só ele ouvisse de Deus e os demais não. Não, em hipótese alguma! Nem Paulo e nem Barnabé, apóstolos de Cristo, arrogaram-se "porta-vozes exclusivos do Altíssimo"! Não, absolutamente! Paulo e Barnabé "contavam quão grandes sinais e prodígios Deus havia feito por meio deles entre os gentios" (At 15.12). Quando estes se calaram, falou Tiago, o qual esclarecendo a questão julgou que não se deveria perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertiam a Deus (At 15.19). E o que aconteceu, em seguida? Os irmãos que ali estavam, que exerciam a liderança da Igreja, juntamente com toda a Igreja, analisaram os fatos narrados e o parecer de Tiago e então usaram o discernimento espiritual que possuíam, a fim de chegar na conclusão do assunto! O texto diz que eles tiveram consenso entre si (At 15.22-25) e entre eles e o Espírito Santo (At 15.28)! É tão óbvio: eles consultaram mutuamente uns aos outros sobre a questão em foco e chegaram a um consenso entre eles; os quais, obviamente, consultaram ao Senhor para saber se aquele consenso obtido entre eles era também consenso com o Espírito! Nem mesmo o consenso entre eles foi tido como ponto final na questão - e estavam ali homens como Tiago, Paulo, Barnabé, etc - mas o reconhecimento que cada um tinha de que estavam sujeitos ao erro os enchia de temor e os levaram a consultar também com o Senhor - este sim, a Palavra final!
Amado(a) leitor(a), a verdade é que hoje carecemos muitíssimo dessa sensibilidade espiritual! Hoje, homens tomam para si a prerrogativa que só cabe ao Espírito Santo, dando eles a palavra final nas questões de fé! Homens que com isso abrem um precedente imenso para que um espírito do erro, para que um demônio infernal acabe guiando todo um conjunto de pessoas para a perdição! O sentimento é que parece haver uma névoa nas mentes dos crentes quando se levanta um "Moisés do Novo Testamento": eles abrem mão de discernir, de debater, de questionar e aceitam tudo que é dito, tudo que é falado, de forma passiva, como se desprovidos de espírito (e em alguns casos de cérebro mesmo)! Não existe "um decidir por todos" no Novo Testamento! Pastor, apóstolo, bispo, missionário, evangelista, presbítero, papa, profeta, padre... não importa o título; ele não é infalível, não é absoluto, não é rei sol! Eles exercem a liderança da Igreja e glória a Deus por isso! São os líderes do povo de Deus! Porém, esses líderes devem consultar entre si SEMPRE quando forem tomar decisões que envolvam a Igreja, sendo importante também ouvir a Igreja, e após haver consenso, ser IMPRESCINDÍVEL consultar o Senhor. Veja: É PARA CONSULTAR AO SENHOR DEPOIS DE HAVER CONSENSO ENTRE OS HOMENS, NÃO ANTES! Não é "irmão, eu consultei ao Senhor sobre isso e aquilo, e Ele me deu essa direção..." NÃO, NÃO E NÃO!
Parênteses 1: Lembrando que para haver consenso é preciso haver mais do que uma reunião (a famosa "reunião de repasse"): é preciso haver liberdade de expressão!
Parênteses 2: O pior de tudo é que os "Moisés do Novo Testamento" cobram de todos depois quando a direção falha, quando dá zebra. Na hora de decidir, o "Deus me falou e vocês é que escutem calados"; na hora que dá zebra "somos um corpo e todos precisam ajudar". Olhe para as seitas neopentecostais e você facilmente constatará isso!
Quero ser muito enfático aqui, querido(a) leitor(a): É PARA BUSCAR O CONSENSO ENTRE A LIDERANÇA, podendo envolver a Igreja e obrigatoriamente, após o consenso, BUSCAR AO SENHOR SOBRE O ASSUNTO! É óbvio que para aqueles assuntos que já estão claramente estabelecidos nas Escrituras, isso não se aplica. Por exemplo, eu não preciso consultar e nem obter consenso se devo, como líder, ensinar sobre pecado, céu e inferno, necessidade de arrependimento, obras mortas, etc. Não preciso de consenso para pregação e ensino das Escrituras, nem para correção e disciplina daqueles que pecarem. Não preciso de consenso para escrever esse texto nem esse blog. Mas preciso de consenso (incluindo com o Senhor) se devemos ou não "adotar inovações" como prática da Igreja, ou em casos de mudança de logradouro, ou levantamento de obreiros, envio de missionários, etc. Veja que em todas as seitas e heresias que surgiram no meio do povo de Deus, elas foram fruto de "pessoas que julgaram ter ouvido a direção de Deus" e que não consultaram, mas apropriaram-se da prerrogativa de "palavra final" e assim levaram (e levam) milhões à destruição espiritual. Foi assim, por exemplo, com o presbiteriano Joseph Smith Jr., que afirmou ter recebido "uma nova revelação", não consultou com ninguém e acabou criando o Mormonismo; foi assim com o presbiteriano Charles Taze Russell, fundador do Russelismo ou Testemunhas de Jeová, só para mencionar alguns. Modernamente, veja-se o ESTRAGO que o Movimento G-12 fez em inúmeras Igrejas, construído sobre uma experiência pessoal de visão de um líder, desviando milhares de crentes do verdadeiro Evangelho de Cristo, com seu "paipóstolo patriarca", untado e besuntado, que seguem estritamente o dogma da infalibilidade patriarcal!
A revelação chegou à plenitude em Jesus Cristo, querido(a) leitor(a); portanto, toda alegação de novas revelações e novas verdades, por sonhos, visões e outros meios, deve ser cotejada com as Escrituras, corretamente interpretadas. Vale lembrar que é um dos princípios da Reforma Protestante o sacerdócio universal dos crentes, de livre exame da Bíblia e, portanto, de livre acesso a Deus, por meio de Jesus Cristo. Por isso, devem ser rejeitados o sacerdotalismo, o sacramentalismo e o ritualismo, qualquer tipo de hierarquia na esfera espiritual e eclesiástica, e a pretensão humana de interpor-se entre o crente e Deus. Há sempre que se prestar atenção em duas coisas: na direção individual do Espírito Santo e na direção do Espírito Santo aos demais que estão contigo no mesmo propósito e intenção do coração. O papel da liderança no Novo Testamento é buscar o consenso entre si e com Deus, para só então agir!
Pense nisso!
Graça e Paz!