domingo, 1 de novembro de 2020

A BÍBLIA PRECISA SER ATUALIZADA? UMA ANÁLISE REVISTA E CORRIGIDA DO ANTIGO DISCURSO


"A Bíblia precisa ser atualizada"
. Esse discurso é frequente. Recentemente foi trazido novamente à baila após a exposição do pastor Ed Kiwitz, viralizando nas redes sociais. Eu assisti o vídeo. Antes de mais nada, é importante deixar claro que é preciso entender o que o pastor expôs. Ele não falou da atualização textual, mas sim da atualização exegética e hermenêutica, ou seja, da interpretação e aplicação do texto bíblico no cotidiano. Ele foi infeliz na escolha das palavras e em algumas interpretações que fez para exemplificar,  mas tem razão no cerne de sua tese: há muita barbárie sendo cometida "em nome de Deus", "com base na Bíblia", mas sem base bíblica alguma. Tudo por conta de uma interpretação que faz com que a Bíblia fale o que os autores originais nunca, em momento algum, tencionaram dizer. Os tristes exemplos de que o ensino dele é correto são notórios. Aqui, pretendo mostrar os pontos de concordância e acerto de sua parte.

Eu tenho aqui nesse blog procurado ensinar que a Bíblia se interpreta pela própria Bíblia, regra hermenêutica oriunda da Reforma Protestante. Ela é suficente em si mesma e inerrante. Além disso, a interpretação bíblica tem em Cristo Jesus a chave hermenêutica, isto é, toda a interpretação e aplicação das Escrituras deve ser com base em Cristo, a Palavra Eterna. Ele mesmo nos deixou esse exemplo: "ouviste o que foi dito aos antigos"..."eu, porém, vos digo".  

Note que não estamos aqui falando em mudar o texto, nem inserindo nada nele nem subtraindo nada. O próprio Jesus nos ensinou que suas palavras são eternas: "Os céus e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão" (Mt 24:35). Mas sim estamos falando sobre interpretar, que é tomar o texto e extrair dele lições e regramentos para a fé cristã. Por conta de erros de interpretação há uma série de males sendo causados às pessoas individualmente e à Igreja coletivamente "com base na Bíblia". Por exemplo, a distorção da função da liderança cristã - centrada em Moisés, para o povo judeu, num contexto do Antigo Testamento - e não em Jesus ou nos apóstolos, no contexto do Novo Testamento o qual é (ou deveria ser) o vigente para os cristãos (veja mais em: http://apenas-para-argumentar.blogspot.com/2019/02/os-rudimentos-do-mundo-e-graca-de-deus.html. Veja também: http://apenas-para-argumentar.blogspot.com/2017/04/dominando-ou-sendo-exemplo-apascentando.html). 

Enfatizo um ponto importantíssimo: JESUS É A CHAVE HERMENÊUTICA DA BÍBLIA. Note que, portanto, não faz sentido algum aplicar textualmente muito do Antigo Testamento para a vida dos cristãos hoje. Tem sentido mandar os cristãos fazerem os sacrifícios ordenados ao povo de Israel no deserto, por exemplo? Tem sentido exigirmos que os crentes façam a circuncisão de seus prepúcios para serem aceitos por Deus? Tem sentido aplicarmos textualmente as regras relativas à impureza de homens e mulheres, estabelecidas em Levítico 15, aos cristãos? A mulher cristã, por exemplo, em seu período menstrual, não pode participar da santa ceia do Senhor? Quem comer camarão ou arroz com polvo ou leitão a pururuca está excluído do culto?

Mas pastor Ricardo, a Bíblia não diz que "toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra"? Sim, com certeza! Toda Escritura é inspirada e útil, não é esse o ponto. O Antigo Testamento e o Novo Testamento são Escrituras inspiradas e úteis. No entanto, é preciso saber usar! Um martelo, por exemplo, é uma ferramenta útil, porém não tem utilidade alguma para parafusar. O martelo não perdeu sua característica de ser útil, mas é preciso saber usá-lo de forma a aproveitar corretamente essa utilidade. 

Estamos falando sobre o Antigo Testamento, porque é via de regra uma porção das Escrituras que é muito, mas muito mal entendida e aplicada, sendo usado como justificativa para um sem número de sandices, radicalismos e farisaísmos tanto no passado como no presente. Creio particularmente que há multidões machucadas emocional e espiritualmente com denominações por conta, dentre outros, do mal uso do Antigo Testamento. Mas o próprio Novo Testamento pode ser mal usado também, ainda que em menor intensidade. Sem Jesus, a aplicação literal das Escrituras produzem distorções sem paralelo. Assim é por exemplo a questão da escravidão: há quem diga que ela é correta à luz da epístola a Filemon! Ou mesmo a questão das mulheres na Igreja (uso do véu, "estarem em silêncio", etc.).

Eu concordo com a necessidade de uma atualização hermenêutica e exegética das Escrituras, no sentido de balizarmos a aplicação da Bíblia na vida moderna baseado em Jesus. Daí precisamos ter cuidado com a interpretação do texto, que precisa ser feita à luz de um contexto social, cultural, político e religioso e NUNCA fora desse contexto. Não se trata de relativizar a Palavra de Deus; está é e sempre será absoluta. Mas sim como eu, cidadão do séc. XXI, tomo um texto produzido nos contextos de mais de 5.000 anos antes de Cristo, leio esse texto, entendo-o e aplico-o em minha vida e na vida de outras pessoas. 

Vale dizer que a maneira como a Bíblia foi interpretada variou ao longo da história do cristianismo. Os pais apostólicos e apologistas, dentre eles Clemente de Roma, Inácio e Policarpo, sustentavam que na interpretação das Escrituras, ambos os Testamentos, Antigo e Novo, uniam-se em torno de Cristo, o centro. Logo, a interpretação bíblica era essencialmente cristológica. Por sua vez, Orígenes seguia a escola alexandrina de interpretação, que era alegórica (o contexto histórico fica em segundo plano em relação ao "sentido espiritual"). Teófilo já era adepto da escola de Antioquia, centrado na interpretação histórica da Bíblia, de viés literal (método histórico-gramatical, muito usado na Reforma). Na Idade Média, o método de interpretação baseava-se em quatro vertentes - literal (ou histórico), alegórico (ou espiritual), tropológico (ou moral) e anagógico (ou futuro, aquilo que se deve esperar). 

O pastor Ed cita a questão da submissão das mulheres aos maridos para apoiar sua tese. Eu discordo da aplicação que ele fez. Esse texto bíblico é bem interessante e vale a pena explorar um pouco mais aqui, para exemplificar a necessidade de interpretação em e por Cristo.   

Perceba que ao afirmar a submissão da esposa em relação ao seu marido, em Efésios capítulo 5, Paulo interpretou o ensino do Antigo Testamento à luz... de Cristo! Ele diz: "As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor; porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo. Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido. Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito. Assim também os maridos devem amar a sua mulher como ao próprio corpo. Quem ama a esposa a si mesmo se ama"

Sejam submissas... como ao Senhor! Maridos, amai vossa mulher... como Cristo amou a Igreja! Essa submissão e esse amor, no relacionamento conjugal no âmbito do casamento, tem com base o Senhor Jesus, o exemplo para ambas as partes (e não no contexto socio-cultural do Antigo Testamento)! 

Observe que 4 vezes é repetida a frase “ame a sua mulher”. Este é o principal mandato de Deus aos maridos. Ser cabeça da esposa é uma grande responsabilidade. O propósito desta função não é para que o homem abuse de sua posição para ter alguma vantagem ou algum benefício pessoal, ou mesmo seja bruto ou violento ou opressor em relação à sua esposa. Deus fez do homem o cabeça para que este, usando bem sua responsabilidade, busque sempre o bem-estar integral de sua mulher!  “Se entregou a si mesmo por ela”. O verdadeiro amor se entrega, se nega a si mesmo e se sacrifica pelo bem da pessoa amada. O marido “machista” crê que ele está para ser servido. O marido cristão é o primeiro a servir, em se esforçar e dar sua vida para o bem de sua amada esposa; viver para ela, e não para ele mesmo, assim como Cristo não morreu por si mesmo, em seu próprio benefício, mas sim pela Igreja! Amor, na Bíblia, é um conceito mais profundo que esse conceito laissez-faire moderno. Conforme o texto de I Coríntios 13, o amor que o marido deve ter por sua esposa envolve:

  1. Ser sofredor (do grego “makrothumeo”): “ter um ânimo longo, não desanimar… ser paciente em suportar as ofensas e insultos dos outros; ser lento e tardio em vingar-se… tardio para enfurecer-se”.
  2.  Ser benigno (do grego “chresteuotai”): “tem boa vontade para com alguém”.
  3.  Não ser invejoso (do grego “zeloi”): “arder em zelo, estar cheio ou ferver de ciúme, ódio, raiva; empenhar-se por alguém (para que não seja arrancado de mim); enciumar; arder em ciúmes.”
  4.  Não se vangloriar (do grego “perpereuetai”): “contar vantagem”, “arrogante”, “desdenhoso”.
  5.  Não se ensoberbecer (do grego “phusioutai”): “estar inflado por sua própria importância”, “encher-se”, “ficar inchado ou arrogante”, “estar inflado com orgulho e presunção”.
  6.  Não se portar inconveniente (do grego “ouk aschemonei”): “indecoroso”, “vergonhoso”, “impróprio”, “rude”, “grosseiro”, “de modo sujo”. 
  7.  Não buscar seus próprios interesses (gr. “ou zetei ta heautes”): literalmente “as coisas de si mesmo”.
  8.  Não se irritar (do grego “paroxunetai”):  “azedo”, “áspero”, “carrancudo”, “amargurado”.
  9.  Não suspeitar mal (do grego “logidzetai tou kakon”): “imputar erro”, “considerar equivalente (como tendo a mesma força e peso) ao mal”, “julgar mal”.
  10.  Não se regozija com a injustiça, mas se regozija com a verdade. “Não regozijar com as faltas e falhas do outro, mas alegrar-se com os acertos”. 
  11.  Tudo sofrer, tudo crer, tudo esperar, tudo suportar.     

Maridos violentos, grosseiros, mal educados, mandões, machistas, adúlteros, exploradores, dentre outros, estão completamente fora do que Paulo nos ensina sobre a relação do esposo relativamente à sua esposa. Nem mesmo o sexo conjugal é para ser feito de qualquer maneira: deve ser feito com carinho e respeito pela esposa, sem força-la a nada - de novo, de forma espontânea e voluntária. Usar esse texto paulino, bem como o texto de I Coríntios 7 como justificativa para por exemplo violentar sexualmente a esposa é blasfemar de Deus Todo-Poderoso, além do ato em si ser um crime hediondo! 

Já para as esposas, relativamente aos seus maridos, Paulo nos fala que elas devem ser submissas àqueles. Submissão vem do hipotasso, que significa “disposição para aceitar um estado de dependência; docilidade; ato ou efeito de submeter-se a uma autoridade”. Esse termo bíblico é composto por duas palavras, hipo (“debaixo”) e tasso (“acordo”), o termo significa literalmente "estar debaixo de um acordo", ou estar de acordo com, dando idéia de algo voluntário. A submissão da esposa implica uma atitude de humildade e de unidade com o marido. A mulher deve se sujeitar a seu marido, fazendo-se um com ele, sentindo o mesmo, tendo o mesmo propósito, o mesmo objetivo. Como a mulher deve submeter-se? Como ela faz para com o Senhor! Ou seja, submissão em amor! O amor que faz com que os maridos se sacrifiquem, se necessário for, por suas esposas é o mesmo amor que faz com que as esposas aceitem voluntariamente ser submissas aos seus esposos. Isso implica, dentre outros, em honrar o marido  não fazendo críticas abertas ou veladas, nem expor falhas ou defeitos dele para outrem (inclui filhos, parentes, irmãos da Igreja, etc.), não depreciando-o ou ridicularizando-o. Implica em não ser causadora de confusões (alvoroçadora – Pv 9.13), não fazendo chover dentro de casa à-toa – rixosa (Pv 19.13; 27.15; 21.9,19). Implica em não ser não ser dominadora – a mulher dominadora da família sujeita seu esposo e seus filhos a influência de espírito matriarcal, produzindo gerações de homens dominados/passivos e gerações de mulheres dominadoras. E assim por diante. 

Note: a submissão não implica, em momento nenhum, que a mulher deve se inferiorizar em relação ao seu esposo. Ela não é menos que ele, nem mais que ele. Juntos, esposa e esposo formam uma unidade que deve ser indissolúvel, a não ser pela morte. A mulher foi feita por Deus para ser a ajudadora idônea do marido (Gn 2.18).  Idoneidade significa que ela “tem condições para desempenhar certos cargos ou realizar certas obras”.

É interessantíssimo notar que conforme o relato de Gênesis, Adão, exausto pelo trabalho, sentiu falta de alguém que pudesse ajudá-lo, que pudesse dividir com ele as cargas diárias (Gn 2.19,20). Deus então cria a mulher... do homem! A mulher foi tirada do homem e é assim parte do homem! A mulher foi formada da mesma carne que Adão para que houvesse identificação mútua, amor/respeito (Ef 5.29) e complementariedade. Só se complementa o que é incompleto (Gn 2.21-24)! Assim, como ajudadora idônea, a mulher emprega toda a sua capacidade no casamento, para enriquecimento emocional, espiritual, cultural e material de toda a família! Essa idoneidade manifesta-se maravilhosamente no mundo: não há nenhuma barreira emocional ou intelectual que impeça que as mulheres exerçam na sociedade as mesmas funções que foram exclusivamente exercidas pelos homens no passado! Médicas, engenheiras, líderes, deputadas, CEO... até Presidente da República, nada é "inalcançável" para uma mulher por ser mulher! E isso foi assim planejado por Deus! Um relacionamento marital onde o marido ama sua esposa e a esposa se submete ao seu esposo, tal como a Bíblia ensina e como brevemente expus nessas poucas linhas, é uma verdadeira bênção para o casal e para a família! Perceba contudo que esse entendimento só é possível e a prática viável EM CRISTO! Fora do Senhor, sem Ele, nada podemos fazer, nem ao menos aplicarmos a Bíblia na nossa edificação e na de nossos ouvintes!

Concluindo, a Bíblia não precisa, num precisou e nunca precisará de atualização textual. Quando muito, uma atualização linguística do vernáculo utilizado na tradução (português, inglês, alemão, espanhol, etc.), uma vez que a língua moderna evolui com o tempo. A Bíblia não precisa ser editada, acrescentada ou substituída; no entanto, a leitura literal da Bíblia é insuficiente e errônea. A interpretação e aplicação da Bíblia, dentro das regras da Exegese, precisam urgentemente serem atualizadas! E a forma de fazer isso é "em Cristo", a chave de toda hermenêutica cristã!  

O Senhor te abençoe e te guarde, querido(a) leitor(a)!

Graça e paz!